quarta-feira, 28 de maio de 2014

os donos do tempo

A viagem até Cacoal em Rondônia foi longa - muitas conexões e esperas prolongadas. Na cidade ainda pernoitamos para prepararmos a ida para aldeia - compras de supermercado e encontro com a nossa grande apoiadora local, a professora Laíde, a frente da associação indígena e que nos deu o suporte com os preparativos para a filmagem na aldeia dos Paiter Suruí.

Na aldeia ficamos hospedados na escola. Uma parte da equipe dormiu nas 2 camas do alojamento de professores. A equipe de foto/câmera e eu (diretora) dormimos em redes na sala de aula. Na cozinha da escola cozinhamos com a ajuda de duas jovens indígenas para toda a aldeia, que estava em festa para nos receber. Era a celebração da chicha, bebida fermentada feita com uma mistura de inhame, aipim, cará, entre outras raízes, preparada pelas mulheres paiter.

O povo Suruí Paiter tem na música uma forma de registro e transmissão da oralidade. Uma caçada, a derrubada de uma árvore para fazer lenha, ou até mesmo a chegada da equipe vira música e cantoria, dividida e compartilhada pelo grupo. E foi essa tradição ancestral, que faz parte da formação cultural do povo Paiter que buscamos registrar.

Ao chegarmos, toda a aldeia, dividida em 2 clãs - Gapgir e Kaban - estava se preparando para a festa em uma grande oca, chamada MEA.
O que mais impressiona e chama a atenção de primeira é a questão da língua. Os Paiter Suruí, que tiveram o primeiro contato em 1969, conseguiram preservar a língua original. Dá pra conversar em português apenas com os jovens, com os professores e com as lideranças. Os mais velhos, as crianças e a maioria das mulheres da aldeia, falam apenas a língua Paiter. Mesmo o cacique Joaquim fala pouco o português, apesar de parecer que nos entende bem.

Junto a dois jovens indígenas entramos na mata para acompanhar o corte da taquara, usada na confecção da flauta. Ao contrário do restante da equipe, optei por ir de havaianas, já que os índios assim estavam calçados. Pé no barro, na lama e na água durante a travessia me ajudaram a adentrar nesse espírito, essa relação que pode ser uma extensão da natureza. E se sentir parte, sentir essa integração que é tão difícil nos centros urbanos, é privilégio de poucos. Muitos poderiam sentir, mas deixam passar ou por medo, ou por pudor, ou por pressa, ansiedade.

Os dias foram se passando e, a cada amanhecer nos sentíamos renovados, relaxados. Sem celular, internet, longe das bebidas alcóolicas, das notícias frenéticas de uma mídia viciada, fomos desapegando.  Nosso super técnico de som (chamo de "super" não apenas pela sua capacidade de trabalho como também pelo tamanho extra GG) fez aniversário e a querida Laide preparou um bolinho para o parabéns, compartilhado por todos.

A prática da conversa, da reunião, de partilhar ideias, de expormos o que pretendemos fazer, o que vamos filmar, é a rotina de grupo na aldeia. Todos os dias tinha esse momento, em semi círculo, eu dizia o que queríamos filmar, e o lider Joaton explicava o que aconteceria.

A cerimônia da chicha foi a catarse. Cantoria e o oferecimento da chicha - um clã desafiava o outro. Eles bebiam e vomitavam, e bebiam novamente. E eu ali, atrás da câmera, temerosa que tivesse que também sorver aquele líquido grosso que, quase instantaneamente, provocava o vômito imediato em que a bebia. Mas saí imune. Ninguém "tem que nada"ali. Foi esse o meu sentimento.

Sou Gapgir. O clã Gapgir - dos marimbondos de fogo - assim me reconheceu. Saí da aldeia me deixando por lá um pedacinho. Essa energia do pertencer, do chamar de parente, de prima, de irmã, me comoveu. Saí com muita vontade de voltar. Saí e não saí. Algo meio espiritual, bem forte mesmo, me leva volta e meia praquela proximidade da floresta, os sons dos pássaros, das araras em revoada. Inexplicável. E é muito bom ser assim.

Gente de verdade, a tradição para o português de "suruí" é o episódio de Visceral Brasil sobre essa musicalidade ancestral, passada de geração em geração, que os suruí paiter carregam, desde o início de tudo, desde quando o Brasil não era Brasil. Está nas veias da terra,




Nenhum comentário:

Postar um comentário